Com o fim do crédito de US$ 7.500 para a compra de veículos elétricos, diversas figuras da indústria passaram a esperar o fim do mundo para o mercado de EVs nos EUA. Entre os fabricantes tradicionais (ou legacy, como dizem por lá), há uma onda mundial de cancelamento de projetos elétricos e retomada de desenvolvimento de motores a combustão – mesmo com a proibição total ainda prevista na União Europeia em 2035 (que parte da indústria quer derrubar).
Longe de mim duvidar do poder do bolso, seja aqui, seja nos EUA, seja no Céu, seja no Inferno. Mas pode ser que a demora na chegada eletrapocalipse deixe muitos tão aturdidos quanto os pastores que continuam a marcar data para o juízo final.
Acreditar no eletrapocalipse é achar que a única razão para comprar veículos elétricos eram os sete mil e quinhentos dólares. O que é a cegueira de quem não quer ver, porque ver é admitir sua obsolescência. Em países como o Brasil, elétricos não contam com subsídios generosos (no lugar disso, veículos que já eram os mais vendidos ganham subsídios). Mas ainda assim estão crescendo – exponencialmente. O Reino Unido está para inaugurar seus subsídios ainda e lá elétricos já são a maioria das vendas.
O Índice Uber
Nem todo mundo anda de boné vermelho nos Estados Unidos. E talvez o consumidor – principalmente quem já comprou – não esteja disposto a fazer a entrar na literal batalha contra moinhos de vento de seu presidente e tentar fazer o relógio andar para trás. Donos de elétricos, apesar de notícias sensacionalistas, não tendem realmente a se arrepender.
Se comprar um EV é mais caro, eles são mais baratos de usar e manter, e a diferença acaba se pagando. O “índice Uber” (pode registrar esse nome) é o maior indicador do poder dessa indústria: quando motoristas de aplicativo descobrem que podem fazer mais dinheiro pagando essa diferença, é sinal de que o jogo já virou. E isso é o Brasil, o país onde não existe realmente carro popular.
Então não é difícil prever que a notícia da morte dos EVs nos EUA está sendo altamente exagerada. É certo que os números agora serão bem feios. Afinal, houve uma corrida para as concessionárias para aproveitar o incentivo fiscal antes que acabasse (até a Tesla, que só via vermelho havia um ano, se beneficiou). A demanda, agora, deve estar totalmente suprida. Mas, a médio prazo, ainda há um produto atraente com um mercado consumidor fiel, e nem governo, nem montadoras podem mudar isso.
Mas talvez eu esteja errado. Alguém pode levantar o argumento de que o estado atual de coisas no mundo é uma anomalia. Lembrar aqui dos subsídios governamentais da indústria chinesa – ou o próprio sistema sociopolítico chinês – e de sua aparente crise de superprodução. O futuro da própria natureza do sistema político americano está em jogo, e a destransição energética lá pode ter vindo mesmo para ficar.
A era das carroças
Mas será essa destransição algo “bom”, como o CEO da Ford disse, para os Estados Unidos? Em termos puramente financeiros. Sem entrar no mérito de existir um planeta onde finanças acontecem.
Se se confirmar o fim do EV nos EUA, o país entra no caminho do isolamento tecnológico no setor automotivo. A gente já viu esse filme. Será como o Brasil no tempo da reserva de mercado da ditadura militar: acabamos com veículos com tecnologia e comodidades de 20 anos antes. A indústria certamente estava muito confortável com a não concorrência com a inovação.
Ao consumidor, restava se virar com que o então presidente Fernando Collor chamava de “carroças”. E essas carroças podem acabar proibidas em lugares com política mais arejada, tornando a indústria automotiva americana cada vez menos competitiva.
Acreditar no futuro dos motores a combustão é botar as fichas no negacionismo. Apostar que, no agravamento da crise climática, a fantasia negacionista será dominante, que decisões continuaram a ser tomadas por ela, E não só nos Estados Unidos, cujo futuro inteiro parece pender numa balança de decisões imprevisíveis, mas num número crítico de países. De forma que o negacionismo seja o suficiente para impedir a mudança tecnológica de avançar também nos países com liderança negacionista.
É uma aposta arriscada, mas não é impossível que seja a vencedora. Mas, nesse mundo infeliz, o apocalipse do qual falamos não seria mais o dos veículos elétricos.