Fim do elétrico? Flex usando etanol emite menos CO₂ que elétricos chineses, diz estudo

Anfavea calcula que, em sua vida útil total, um flex usando 100% etanol emite menos CO₂ que um elétrico puro chinês; mas não é o que parece

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Publicado em: 31 de outubro de 2025

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Editado em: 31 de outubro de 2025 05:10

Na sua conferência de imprensa mensal, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) apresentou o estudo Caminhos da Descarbonização: a pegada de carbono ciclo de vida do veículo. O estudo afirma que um elétrico a bateria (BEV) feito na China emite mais toneladas de CO₂ em sua vida útil que um carro flex brasileiro usando só etanol.

É o fim dos elétricos? Viva o motor a combustão interna? É o que muita gente deve ler desse estudo, mas não é o que realmente mostram seus números, nem a própria Anfavea disse na coletiva – a entidade não é contra a eletrificação.

Aperte os cintos, e vamos lá…

O que diz o estudo

Feito em parceria com o Boston Consulting Group (BCG) o estudo argumenta sobre as vantagens competitivas do Brasil em comparação com o mundo na questão de emissões de veículos automotores leves e pesados.

Usando de diversas fontes internacionais, ele traz o consumo da vida útil de um carro médio. A vida útil é estabelecida 160 mil km – segundo a Anfavea, esse número foi escolhido para ser compatível com estudos internacionais consideram a vida útil como 100 mil milhas. Ao estudar a vida útil, e não apenas as emissões, o estudo leva em conta a fabricação do veículo, que tem sempre uma proporção grande nas emissões – proporção muito maior no caso dos veículos elétricos, que exigem mais energia para serem fabricados.

O estudo traz uma constatação que vai soar particularmente bombástica: a de que um carro elétrico chinês operado no Brasil emitiria, em toda sua vida útil, mais que um flex a combustão interna (ICE) também produzido no Brasil usando etanol puro.

A diferença é de menos de 2%, mas está lá: 14,0 toneladas de CO₂ para o flex usando só etanol 100% versus 14,2 toneladas de CO₂ para o elétrico chinês. Veja no gráfico abaixo:

O primeiro item, “Bat. Ocid.”, significa um elétrico com sua bateria produzida em “países ocidentais”, o que é o melhor de todos os casos no estudo. Não existem híbridos plug-in flex ainda (devem chegar em breve), então o número para o híbrido é de um não plug-in (HEV) usando apenas etanol.

Os números chineses, os piores em todas as categorias, inclusive na produção de veículos elétricos, são explicados pela matriz energética chinesa, que ainda usava 54% de carvão ao final de 2024, segundo a estimativa da ONG Det Norske Veritas (DNV).

O que o estudo diz a favor dos elétricos

O estudo da Anfavea/BCG encontrou números bem diferentes de outro estudo feito anteriormente pelo ICCT Brasil (Conselho Internacional de Transporte Limpo). Mas até aí é como ciência funciona: apesar do jornalismo de divulgação científica ter o hábito de criar títulos bombásticos*, um último estudo não é a última palavra. Uma informação científica se consolida ao ser revisada por pares ao longo dos anos, se seus resultados são confirmados.

O estudo fornecido citou fontes para os números internacionais, mas não explicou como chegou aos números do etanol. O evdrops pediu esse detalhamento, mas não obteve resposta em tempo de publicação. A conta não é simples, e falamos mais dela abaixo, mas vamos analisar os números pelo que eles mostram.

Há uma parte definitivamente positiva para os elétricos nos números levantados. Uma constatação interessante é como o estudo da Anfavea concorda com outro estudo, do ICCT Brasil, que, na sua conclusão, se opõe veementemente ao flex. O estudo do ICCT diz que carros flex são uma armadilha para o Brasil. Mas ambos os estudos concordam que, por conta da nossa matriz elétrica 90% renovável, os veículos elétricos são bem mais eficientes para combater a mudança climática no Brasil do que em outros países.

Voltando ao gráfico acima: o BEV de bateria chinesa emite menos que a metade do CO₂ em sua vida útil no Brasil (14,2 toneladas) do que na China (33 toneladas).

O melhor veículo no estudo ainda é um BEV, mas sem a bateria produzida na China (11,2 toneladas pelo BEV com “bateria ocidental”).

A China não deve continuar suja indefinidamente: segundo a mesma DNV que calculou a matriz elétrica chinesa, 80% das novas adições ao sistema elétrico do país foram de renováveis em 2024. Mas não vamos ficar na China. Podemos nos perguntar: e se nós, brasileiros, com nossa matriz energética superior, produzíssemos a bateria aqui mesmo?

O evdrops levou essa questão à coletiva, e obteve uma resposta afirmativa. “Essa é uma discussão bem complexa, porque hoje não temos uma escala [de produção]”, afirma Masao Ukon, diretor executivo, sócio e líder da prática automotiva na América do Sul do BCG. “É uma discussão para o futuro. Não sei dizer qual é o tempo, mas sem dúvida: a produção de bateria hoje requer uma quantidade de energia e emissão de CO₂ relevante. Pelo Brasil ter um perfil energético diferenciado, a produção de baterias no Brasil teria uma pegada de carbono mais baixa.”

O que o estudo não diz a favor dos flex

Se o estudo não enterra realmente os elétricos*, os também não são uma notícia tão boa assim para os flex – o status quo dos veículos mais vendidos do Brasil.

Objetivamente, o que existe a favor do etanol é o seguinte: o CO₂ emitido na queima do etanol foi retirado do ar pelas plantas, o que gera um processo cíclico – o que os carros adicionam à atmosfera na queima, a plantação absorve de volta. É isso que significa ser um combustível renovável.

Foto de carro sendo carregado com etanol no posto
O dilema do etanol | Engin Akyurt / Pexels

Mas o etanol na vida real não é limpo: existem emissões de gases estufa no processo de produção e transporte, que usa combustíveis fósseis: fertilizantes, máquinas agrícolas, energia na destilaria, fertilizantes, caminhões tanque etc. Mesmo levando isso em conta, e não só no Brasil, o etanol costuma se sair bem melhor que a gasolina em estudos: entre 40% a 60% menos emissões. No caso do estudo da Anfavea, considerando os 30% de etanol que vão na gasolina do Brasil, o número apresentado é alto: representa uma redução de 69% das emissões quando comparado com gasolina pura.

O caso é que flex não é carro a álcool. O empate técnico entre o veículo a combustão interna com o BEV chinês acontece num mundo ideal. Na vida real, o flex rodando de fato no Brasil gasta bem mais que as 14 toneladas de CO₂ do flex a etanol hipotético: pelo própria estudo da Anfavea, o número médio dos flex é 28,4 toneladas de CO₂. Esse é o número da realidade: os flex emitem exatamente o dobro do que o elétrico chinês.

Isso porque o brasileiro compra etanol quando e por que é mais barato, não porque quer salvar o planeta. Em 2024, o Brasil consumiu 44,19 bilhões de litros de gasolina C (com etanol adicionado). O etanol da bomba vendeu menos da metade: 21,66 bilhões de litros (números da ANP).

Descontando o etanol adicionado à gasolina, o total em gasolina pura fica em volta de 32 bilhões de litros. E adicionando o etanol que vai na gasolina ao total do etanol, chegamos num empate: 32 bilhões de litros de etanol usados no Brasil em 2024. É um empate em volume, mas não em relevância: como a gasolina permite andar cerca de 30% a mais que o etanol para o mesmo volume de combustível, o Brasil a mais dela do que do etanol em quilômetros percorridos.

Mas, mesmo com o brasileiro consumindo tanta gasolina, o Brasil não é capaz de suprir sua própria demanda de etanol. O Brasil está importando etanol de milho dos EUA.

E isso nos leva ao problema que não aparece nas estatísticas: o desmatamento.

Aquilo que ninguém menciona…

A mudança do uso do solo no Brasil, causada pelo desmatamento, é responsável por quase 50% das emissões do país. O etanol não tem influência direta nisso: o plantio na Amazônia é proibido pelo decreto nº 6.961, de 2009. O decreto foi abolido em 2019 por outro decreto do então presidente Jair Messias Bolsonaro, mas uma decisão judicial em abril de 2020 suspendeu esse decreto e a situação atual é algo nebulosa, mas não houve deslocamento da produção de cana para a Amazônia.

Mas, mesmo sem derrubarmos a floresta para plantar cana, o etanol ainda assim influencia o desmatamento. Como qualquer produto agrícola, seu uso em terras férteis pressiona a fronteira agrícola para outros locais. Um estudo de 2011, Os efeitos indiretos da expansão da soja e da cana de açúcar no desmatamento da Amazônia, pelos economistas Pedro Henrique Batista de Barros e André Luis Squarize Chagas (ambos da FEA-USP) calculou que mais de 10% do desmatamento na Amazônia era causado indiretamente pela produção de cana de açúcar no resto do país (um número maior que o da soja).

Para o Brasil suprir o equivalente à gasolina consumida no país anualmente, teria que mais que duplicar a produção de etanol, podendo causar um efeito similar na pressão no desmatamento. Isso só para suprir o próprio país, sem contar a ideia de exportarmos a tecnologia e virarmos a Arábia Saudita dos biocombustíveis.

Essa questão não é só no Brasil, aliás. Por conta do uso do solo, um estudo nos EUA em 2022 concluiu que o etanol era pior para o ambiente que a gasolina no país.

Mas talvez o argumento mais decisivo seja: quem está defendendo o fim do flex? Não é essa a conclusão óbvia ao se considerar o etanol como a saída nacional?

Existe um projeto de lei (o PL 304/2017), proibindo combustíveis fósseis e impondo apenas biocombustíveis e eletricidade para veículos novos a partir de 2030 (e proibindo combustão interna em 2040). Esse seria o fim do flex – depois disso, só etanol. Mas, por algum motivo, é raro ver esse projeto ser lembrado quando é discutida a sustentabilidade do etanol.

Leia o estudo da Anfavea na íntegra aqui.

*Nosso título é uma paródia do clickbait que esperamos ser criado em outros lugares, mas também um experimento para ver se informação disfarçada de clickbait pode vencer o clickbait disfarçado de informação.

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